Seu emprego pode estar ameaçado
pelos robôs. Como preparar-se para transitar para outro? Ou para outro trabalho?
Difícil é passar de um trabalho
material para outro imaterial. Isto está posto com urgência para a sua geração,
a de seus filhos e a de seus netos. O artigo a seguir tenta levantar a ponta do
véu que encobre as questões de fundo envolvidas neste assunto. Indispensável.
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Capitalismo da Informação
Alfredo Maciel da Silveira
Setembro/ 2019
Desde a reestruturação
industrial iniciada nos anos 70, com introdução da microeletrônica nos
processos industriais e o avanço para a robotização e automação que prosseguem
até hoje, abrira-se o debate sobre o futuro do capitalismo, tendo em vista que sua
dependência da exploração da força de trabalho humano (trabalho vivo) aplicada
diretamente nas linhas de produção estaria agora posta em xeque pela
progressiva extinção daquela forma de trabalho. Até mesmo em interpretações
neoconservadoras deste fenômeno contemporâneo, o capitalismo estaria em transição
“suave” para o que denominaram uma “sociedade pós-industrial” e não mais “capitalista”.
Nos anos 80, debruçando-se sobre o campo de observação das regiões do mundo que estiveram na vanguarda daquelas
transformações, percebíveis já na ocasião quanto a seus desdobramentos e tendências
futuras, as pesquisas de Tessa Morris-Suzuki (doravante TMS) resultaram nos
dois premonitórios e seminais artigos(1), objetos de apresentação neste presente texto cuja intenção é lhes servir como um guia de leitura.
Embasada no quadro conceitual da teoria
do valor-trabalho e na abordagem marxista da dinâmica do capitalismo (fazendo-nos
inclusive lembrar um paralelo com Marx, que se inspirara na observação do nascente
capitalismo industrial da Inglaterra, vanguarda de seu tempo), a autora interpreta
os novos fenômenos, não como tendentes aos “limites absolutos” do sistema capitalista,
mas sim como manifestação da metamorfose do próprio capitalismo no rumo do que
denominou “capitalismo da informação”. Isto lhe permitirá levantar o véu das
relações de trabalho e das relações de dominação de classe nas novas condições
de funcionamento do sistema. E, finalmente, trazer-nos sua contribuição para o
esclarecimento do novo contexto social que deve embasar a ação política transformadora
da sociedade.
Aqui não se pretende retomar a
discussão - ensejada pelo seu primeiro artigo de 1984 - da teoria do valor-trabalho
e de seu lugar na análise da autora, o que de resto ela já o fez no artigo de
1986 (ver Nota 1 ao final). Mas dado o lugar central do processo inovativo na
análise da autora, ajuda-nos a compreensão dos dois artigos se começarmos pela
crítica mais recente, focada na arguída dificuldade da relação entre
valor-trabalho e inovação.
A crítica à teoria do
valor-trabalho no ambiente de inovação concentra-se no caráter não repetitivo desta
para justificar a "impossibilidade" de se lhe atribuir valor. Mesmo
nos marcos tradicionais do capitalismo industrial - que TMS demonstrará estar
superado pelo atual "capitalismo da informação" ou informacional - aquela
crítica parece não considerar que em grande medida e desde o início do capitalismo,
foram institucionalizados mecanismos defensivos dos detentores da inovação,
mediante registro de marcas, patentes, copyright,
licenças, de modo a lhes conferir o caráter de mercadoria, ou seja, de modo que
se lhe pudesse atribuir valor de troca, ou dela extrair lucros de
monopólio.
Posteriormente, ainda nos
marcos do capitalismo industrial, o processo inovativo se rotinizou e se
institucionalizou nas estruturas das grandes corporações, de modo a se converter
num fluxo contínuo de inovação, na busca incessante dessas organizações em
preservar posições monopolistas e assim auferir lucros de monopólio. Portanto
já havia passado a época de um Edison-gênio da lâmpada incandescente, ou de um
Tesla-gênio do motor de indução, e de tantos outros que personificavam a autoria
e propriedade da inovação.
Desde há aproximadamente um
século, a principal forma de concorrência intercapitalista não é em preço,
qualidade, etc. É justamente a concorrência em inovações, ponto central da
linha de pesquisa neo-schumpeteriana(2) na ciência econômica
contemporânea.
Portanto, bem antes das
tendências à automação e do recuo do trabalho material, já havia intensa
apropriação privada do trabalho vivo (material e imaterial) incorporado ao
processo inovativo.
Assim pois se chega ao que
parece a dificuldade maior da crítica dantes mencionada. Ao apontar a
dificuldade de valoração do "trabalho de inovação" pela ausência de
"trocas repetidas" ela nega o que é flagrante: a incorporação
crescente e rotineira do trabalho vivo ao fluxo inovativo, reconhecidamente o
lugar central da concorrência intercapitalista.
Mas TMS subordina esse conceito
de inovação a um outro muito mais amplo que é o da produção de conhecimento.
Na verdade, desde fins do
século passado assiste-se à confluência de dois processos. Ao processo
inovativo, da concorrência schumpeteriana, característico do secular
capitalismo industrial e plenamente institucionalizado em sua fase monopolista,
superpõe-se a onda devastadora do novo “capitalismo da informação” (TMS), a
deslocar o foco da produção de bens para a da produção de conhecimento.
A partir do último quarto do
século XX deflagrou-se a larga onda de revolução científico-tecnológica que
prossegue em nossos dias, a refazer toda a base produtiva, os meios e formas de
vida humanas, a estrutura social e o ambiente cultural. Na produção e nos
serviços ao nosso redor, inclusive na vida doméstica, assiste-se à introdução
da robótica e da chamada “inteligência” artificial, a apontarem tendência à
automação radical e com esta a eliminação do trabalho vivo material nas linhas
de produção tal como historicamente vicejou sob o clássico paradigma do
capitalismo industrial.
Prossegue e exacerba-se o
processo inovativo, inclusive aquele inerente à própria onda de destruição
criativa da revolução científico-tecnológica, centrado em atividades nas quais
a energia humana vertida em trabalho desloca-se intensamente do campo material
para o imaterial. Mais importante do que a tendência à automação, a novidade é
trazida pela revolução informacional contemporânea. A escala e abrangência
generalizada, amplamente difundida em todos os setores da produção e da vida, adquirida
pelo conhecimento como insumo da produção, e as diversas peculiaridades
econômicas e morfológicas deste insumo, seja como bem livre, seja como
mercadoria, traz a debate as mutações do sistema produtivo e das relações de
produção, reiterando antigas questões sobre as formas de apropriação do valor
criado, e da distribuição da renda e da riqueza social.
Note-se que em sua evolução, as
categorias do conhecimento e da informação tornam-se “irmãs siamesas” porquanto
em regra geral, a circulação da primeira é necessariamente mediada pela
segunda. Daí que no discurso analítico sobre o novo ambiente socioeconômico em
evolução se observe o trânsito contínuo entre as duas categorias. Isto é bem
presente nos referidos trabalhos de TMS.
Veja-se ilustrativamente esta
passagem, onde a autora realça que a verdadeira essência das transformações
então em curso nos anos 80 não estava simplesmente na tendência à automação,
mas sim na passagem da produção de bens para a de conhecimento-informação como
mercadoria(3):
“(...) Um mundo de ficção científica, de uma
economia inteiramente automatizada, só tem importância enquanto nos ajuda a entender
os processos reais do desenvolvimento contemporâneo. No meu artigo antecedente
eu sugeri que uma característica essencial daquele desenvolvimento é não
simplesmente a automação da produção, mas um deslocamento no foco da atividade
econômica da fabricação de bens materiais para a produção de conhecimento. Isto
acontece de três maneiras. Primeiramente as companhias introduzem na produção
equipamentos controlados por processadores eletrônicos, e assim a força de
trabalho vem a ser concentrada mais e mais nas áreas de planejamento, pesquisa
e desenho: continuamente modificando e desenvolvendo o conhecimento a ser
aplicado na fabricação de bens materiais. Neste caso a empresa não vende
imediata e diretamente informação como mercadoria mas a utiliza para aumentar o
valor de seus produtos finais. Em segundo lugar, um número crescente de
empresas começam a se especializar na produção e venda da mercadoria “informação
para a produção”, isto é, a comercialização de desenho, software, bases de dados, etc, que será utilizada por outras firmas
em seus processos de produção. Em terceiro lugar, há também uma expansão da produção
e venda da “informação bem de consumo”, na forma de livros e periódicos,
programas de TV, vídeos, softwares de
uso doméstico, e assim por diante.”
A autora analisa em
profundidade a existência de amplo estoque de conhecimento social livre, portanto
sem um preço, cuja apropriação desigual pelo poder assimétrico das grandes
empresas permite-lhes a produção de novos conhecimentos, estes sim de caráter
privado e destinados a venda no mercado, portanto mediante um preço.
Citando:
“(…)Uma vez mais nos defrontamos com o fato de
que na produção de informação o conhecimento social livre é apropriado e
convertido em fonte de lucro privado. Fomos movidos para fora da imagem do
capitalismo clássico descrita por Marx, onde os insumos da produção são
comprados no mercado a preços competitivos e onde as fontes de exploração podem
consequentemente situar-se somente no próprio processo de trabalho. Agora é
teoricamente possível para as corporações extraírem lucros sem a exploração
direta de sua força de trabalho, mediante o uso de um bem livre, para criar um
produto que então temporariamente se torna monopólio privado da corporação”.
Ao longo especialmente de seu
segundo artigo, de 1986, a autora problematiza os limites da teoria marxista tradicional
do valor-trabalho para dar conta dessas condições contemporâneas em que parte
significativa dos lucros provém da produção e venda da mercadoria conhecimento,
tendo por insumos outros conhecimentos socialmente gerados desde fora do
trabalho direto na linha de produção. Remete-se inclusive ao Marx dos
“Grundrisse”, que antevia um mundo da exploração da força de trabalho social,
generalizada, e não mais a dos trabalhadores diretamente envolvidos no processo
produtivo.
Por essa linha de argumentação
a autora chega ao ponto central de sua tese das mutações que conduziram a um
“capitalismo da informação”, onde há esferas de exploração de valor criado pelo
trabalho para alem do circuito de produção. E questiona:
“(…) Se aceitarmos que a exploração direta do trabalho
está se tornando menos importante como fonte de lucro, e que a exploração
privada do conhecimento social está se tornando mais importante, podemos
continuar a descrever o sistema econômico como “capitalista”? A resposta a esta
questão inevitavelmente dependerá de nossa interpretação do termo
“capitalista”. Como temos já indicado, uma sociedade na qual a produção
comercial de informação é uma importante fonte de lucro privado não constitui
um sistema generalizado de produção de mercadorias. Mas ela retem a
característica fundamental do capitalismo: aquela de que a concentração privada da
propriedade nas mãos de uma pequena fração da sociedade habilita-lhe apropriar-se
de uma fração desproporcional do produto social(…)”
Para mais adiante sumarizar:
“(…)Capitalismo, em outras palavras, é um
sistema dinâmico, capaz de assumir formas muito diferentes em distintos
contextos históricos. O capitalismo industrial, baseado na exploração direta da
força de trabalho manufatureira é transmutado pelo processo de automação em um
novo sistema onde a exploração crescentemente engloba todos aqueles envolvidos
na criação do conhecimento social e na sua transmissão de geração a geração.
Contra a idéia de uma sociedade “pós-industrial” ou “pós-capitalista”,
contrapomos a idéia do “capitalismo da informação”, onde os altos níveis de
automação e a “informatização[softening] da economia” coexistem com novas e ampliadas
esferas de exploração de muitos por poucos”.
Na parte final da exposição a
autora analisa em mais detalhe:
1) o conhecimento social como
fonte de lucro privado;
2) as relações de trabalho que
asseguram o controle da informação pelas grandes corporações privadas e,
finalmente;
3) o novo contexto social que deve
embasar a ação política transformadora.
LEIA TAMBÉM: Os ladrões das multidões
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Notas
[1] Tessa Morris-Suzuki,
“Robots and Capitalism”, New Left Review 147, setembro/outubro, 1984. A autora
deu sequência ao debate suscitado por este artigo mediante a publicação de
“Capitalism in the computer age”, New Left Review, I/160, Novembro-Dezembro 1986.
Ambos os artigos, em português, podem ser acessados respectivamente em:
https://drive.google.com/open?id=1cNvwn9jtn92lAQtZaHLWqZOVozgZWxwU
https://drive.google.com/open?id=1IFFWS5_MH8gwrIesY-FZ0ny1CuKtce3A
[2] Joseph Schumpeter, através
de suas obras durante o século XX, teorizou o desenvolvimento econômico como
impulsionado por ondas de inovação e correspondente difusão, numa sucessão de
desequilíbrios indutores de investimento e de renovação das estruturas
produtivas (“destruição criativa”). No que importa mais de perto ao referido
neste artigo como sendo a linha de pesquisa “neo-schumpeteriana”, trata-se do
aspecto da mencionada institucionalização do processo inovativo, como um fluxo contínuo
ancorado em estruturas especializadas das grandes corporações, tais como as já tradicionais
atividades de “Pesquisa e Desenvolvimento – P&D”, e que hoje se estendem
por redes de pesquisa cada vez mais e mais complexas, integradas e
internacionalizadas inclusive através de mercados.
[3] As citações, traduzidas
pelo autor, pertencem ao artigo de 1986, “Capitalism in the computer age”,
referido na Nota 1 acima.
Muito bom
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